Idiomaticity in grammar: an analysis of the
Bem Que S Construction
Clara Sousa
Universidade Federal do Rio de Janeiro
clarass@letras.ufrj.br
Diogo Pinheiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
diogopinheiro@letras.ufrj.br
Resumo: No português brasileiro, uma construção idiomática particular
identificada pela sequência “bem que”. Exemplos do seu uso são frases
como “Bem que minha mãe avisou que ia chover” e “Bem que eu queria
ganhar na loteria”. A proposta desse trabalho investigar esse fenmeno
sob a luz da Gramtica de Construçes Baseada no Uso (BYBEE, 2010;
GOLDBERG, 2006). Adotando essa perspectiva, propomos que todos os usos
analisados da sequência “bem que” são instâncias de uma construão mais
abstrata, a Construão Bem Que S. Especificamente, neste artigo, propomos
que ela seja identificada, formalmente, pela sequência [bem que [sentença]]
e, no polo semântico-pragmático, pela presença do valor de rejeição de
proposição. Nesse sentido, defendemos que se trata de uma construção de
intersubjetividade, já que atua no gerenciamento de informações inter-
sujeito. A partir de uma análise qualitativo-interpretativa de dados retirados
do Twitter, procuramos relacionar, detalhadamente, os usos dessa
construão com as generalizações propostas.
Palavras-chave idiomaticidade; construção gramatical; pragmática.
Abstract: In Brazilian Portuguese, there is a particular idiomatic
construction which is identified by the sequence “bem que”. Instances of its
use are phrases like “Bem que minha mãe avisou que ia chover” and “Bem
que eu queria ganhar na loteria” (literally translated to English as “Well that
my mom warned me it was going to rain” and “Well that I wanted to win the
lottery”). The purpose of this work is to investigate this phenomenon within
RECEBIDO EM: 31/10/22 | ACEITO EM: 21/03/23 | PUBLICADO EM: 03/05/23
http://dx.doi.org/10.22168/2237-6321-12576
327
the framework of Usage Based Construction Grammar (BYBEE, 2010;
GOLDBERG, 2006).We propose that all the analyzed uses of the sequence
“bem que” are instances of a more abstract construction, the Bem Que S
Construction. Specifically, in this article, we propose that it is formally
identified by the sequence [well that [sentence]] and, semantically and
pragmatically, by the presence of the value of rejection of proposition. In this
sense, we argue that it is a construction of intersubjectivity, since it operates
in the management of inter-subject information. Here, via a qualitative-
interpretative analysis of data found in Twitter, we look for establishing a
detailed relation between the uses of this construction and the proposed
generalizations.
Keywords: idiomaticity; grammatical construction; pragmatics.
328
1 INTRODUÇÃO
Uma marca da Gramática de Construções (doravante GC), desde
sua origem, é o reconhecimento de que padrões idiomáticos preenchem
parte considerável do conhecimento linguístico do falante. Esses elementos
linguísticos se destacam por sua natureza idiossincrática, tanto no que se
refere ao significado, que não é composicional, ou seja, que não pode ser
previsto pelas somas de suas partes; quanto, possivelmente, em relação à
forma, que não necessariamente é previsível a partir das regras gramaticais
de uma língua (FILLMORE; KAY, O`CONNOR, 1988). Acerca desses
fenômenos, na GC, destacam-se estudos científicos que buscam entender a
natureza semântica e/ou formal única que cada idiom apresenta.
Nessa perspectiva, este artigo se propõe a analisar um padrão
idiomático específico do PB, que pode ser ilustrado pelos exemplos abaixo
1
:
(1) Estou um pouco chocada com a história do cristianismo retratado no livro
Uma Breve História da Humanidade. Agora estou curiosa para saber mais.
Para uma religião que prega o amor e compaixão, eles bem que mataram
muito em nome do fanatismo.
(2) Bem que me falaram que Lovecraft ia piorando com o decorrer dos
episódios. O melhor segue sendo o primeiro mesmo.
(3) Bem que podia ter um botão na Netflix “continuar onde você pegou no
sono”.
Todos os dados acima contêm a sequência “bem que” e uma
sentença completa. Como se pode observar, trata-se de dados de um idiom
de codificação e de decodificação. Isto é, seu significado não pode ser
alcançado por meio da soma das partes e a estrutura é convencionalizada,
de modo que não seria possível prever que esse padrão configura a maneira
usual de se transmitir a semântica veiculada por ele (FILLMORE; KAY;
O’CONNOR, 1988).
A partir da identificação desse padrão, surge uma pergunta: qual a
estrutura sintática e o valor semântico-pragmático veiculado por esse idiom,
comumente identificado pela forma “bem que”, que comum a todos os
seus usos? Em outras palavras, o seu aparecimento em uma sentença
acrescenta especificamente qual sentido?
Não foi encontrada na literatura nenhuma análise sistemática que
se propusesse especificamente a dar conta do valor semântico-pragmático
e da forma desse fenômeno. Cunha e Cintra (2001, p. 586) apresentam, como
uma conjunão subordinativa concessiva, a sequência “bem que”. No
entanto, o objeto abordado por eles não pode ser o mesmo que estudamos
1
Todos os exemplos deste artigo foram obtidos por meio da coleta de dados descrita na seção 3
Metodologia.
329
neste artigo, uma vez que este não tem estrutura subordinativa, conforme
se observa nos exemplos acima. Ainda, Aquino e Arantes (2020, p. 183)
apresentam uma categorizaão, sugerindo que “bem que” (esse, como o
nosso, não subordinativo) seja uma partícula de modalização. No entanto,
também não desenvolvem uma análise específica para o padrão.
A busca por entender esse idiomatismo não é trivial. Isto é, é
possível evidenciar, pela análise dos exemplos (1-3), que a identificação de
uma resposta para a pergunta elaborada está longe de ser intuitiva.
Analisemos a semântica dos dados acima. Ora, em (1), é possível apontar que
se quer destacar o contraste entre o catolicismo como uma religião que
prega amor e compaixão e o catolicismo enquanto responsável por
fanatismo e assassinatos. Em (2), parece haver um arrependimento acerca
de um descrédito ao aviso relativo à rie. em (3), é clara uma ideia de
desejo sendo veiculada. O que haveria em comum a todos esses valores?
Além disso, também vale estabelecer algumas afirmações acerca
da sintaxe desse objeto; afinal, a configuração formal das expressões
idiomáticas é uma lacuna comum nos estudos sobre idiomatismo (WULFF,
2013, p. 283). Analisando a estrutura sintática de cada dado, observa-se que
a sentença que sucede a sequência “bem que” pode tanto ser composta por
uma oração simples, como em (1) e (3), quanto por um período composto,
como em (2). Quais seriam, então, as generalizações formais associadas a
esse objeto? E mais: qual a relação entre seu licenciamento sintático e a
semântica veiculada pelo padrão?
A fim de responder a essas perguntas, este estudo se insere no
quadro teórico da Gramática de Construções Baseada no Uso (GCBU)
(BYBEE, 2010; GOLDBERG, 2006), que postula que a totalidade do
conhecimento linguístico do falante é composta por uma rede de
construções (pareamentos de forma e significado) e que historicamente
tem-se preocupado com idiomatismos e sua natureza, ao mesmo tempo,
produtiva e idiossincrática. Nesse sentido, entendemos que o fenômeno
aqui investigado pode ser concebido como uma construção gramatical, a
qual denominamos Construção Bem Que S (doravante, CBQ). Sob essa ótica,
o objetivo central deste estudo é propor uma descrição da CBQ, abrangendo
tanto o polo formal quanto o polo do significado.
Em essência, defenderemos aqui que a CBQ é caracterizada,
sintaticamente, pela presença de uma sequência fonologicamente
preenchida “bem que” e por uma sentena. No que se refere ao seu polo
semântico, defendemos que ela consiste em uma construção de
intersubjetividade que o falante usa para negar uma proposição
pressuposta negativa.
330
Este artigo está organizado como segue: na próxima seção,
descreveremos a metodologia utilizada, que consiste em uma análise
qualitativo-interpretativa de dados retirados da rede social Twitter. Na seção
3, apresentamos nossa análise, que consiste em uma proposta de descrição
da construção CBQ do português brasileiro, abrangendo suas propriedades
formais e semântico-pragmáticas. Por fim, a seção 4 traz as considerações
finais.
2 METODOLOGIA
A nossa investigação parte de uma análise qualitativo-
interpretativa de dados retirados da rede social Twitter. No total, foram
selecionados 500 dados, os quais analisamos um a um, em busca de
generalizações sintático-semânticas.
A respeito da escolha de uma rede social como corpus,
acreditamos que uma fonte de dados inseridos em um contexto fortemente
dialógico é mais adequada para o nosso objeto de estudo, uma vez que
valores pragmáticos intersubjetivos estão em jogo. Assim, foi possível
observar não apenas os tweets em que a construção aparecia, mas também
tweets anteriores, hashtags utilizadas e perfil dos usuários que se
configuraram como valiosas fontes de informação contextual. Pode-se
observar, ao longo da descrição do nosso objeto de estudo, que muitas vezes
nos valemos de informações contextuais para fazer suposições acerca do
comportamento do falante ou do ouvinte, o que nos leva a certas conclusões
a respeito de valores pragmático-interacionais em jogo.
Ademais, a escolha dessa rede social específica também se baseou
na existência de uma ferramenta de busca avançada, que nos permitiu ter
mais rigor no processo de busca dos dados. Isso porque, por meio dela,
podemos especificar a busca a partir de cinco parâmetros diferentes: contas,
filtro, engajamento, palavras e data.
Destes, apenas os dois últimos foram utilizados: por meio do
parâmetro “palavras”, especificamos as palavras que devem aparecer nos
resultados, bem como as palavras que devem aparecer juntas e o idioma.
Assim, através dele, configuramos nossa busca para obter resultados em
que a sequência “bem que” aparecesse; em que as palavras “bem” e “que”
aparecessem juntas, nessa ordem; e em que o idioma utilizado fosse o
português.
Além disso, por meio do filtro “data”, delimitamos temporalmente
a nossa busca, selecionando as datas em que os dados foram publicados na
plataforma. A primeira busca foi feita selecionando, na aba “de”, o dia
331
01/01/2021 e, na aba “at”, o dia 02/01/2021
2
. A partir da seleção desta data, as
demais na sequência foram selecionadas, uma por vez, até se esgotarem os
tweets. Esse procedimento foi repetido até que se atingissem 500 dados
um número que achamos suficiente para lidar com diferentes nuances de
uso e para estabelecer generalizações. A última data em que foi feita coleta
de dados foi o dia 16 de janeiro de 2021.
Os dados levantados foram, então, transferidos para uma tabela do
Excel, em que mais cinco informações foram acrescentadas: a data de
postagem do tweet, a data em que a nossa busca foi realizada, o verbo
utilizado na sentença, o tempo verbal utilizado na sentença e notas que
julgássemos importantes de serem tomadas após a análise de informações
contextuais. Além disso, registramos cada dado, por meio de capturas de
tela, para o caso de eles virem a ser apagados pelos usuários ou de seus
perfis serem excluídos.
3 ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO BEM QUE S
Nesta seção, será exposta a nossa análise formal e semântica para
a Construção Bem Que S. Na subseção 4.1, primeiramente, trataremos
daquelas características sintáticas que caracterizam o padrão. Em seguida,
em 4.2, abordaremos as generalizações semântico-pragmáticas que
subjazem à CBQ. Em 4.3, trataremos da conexão entre os polos. Por fim, em
4.4, abordaremos usos particulares deste padrão idiomático.
3.1 O polo sintático da Construção Bem Que S
Para começar a explorar nossa proposta de análise da Construção
Bem Que S, retomamos (1) e (2), repetidos abaixo, respectivamente, como (4)
e (5), e acrescidos de novos dados.
(4) Estou um pouco chocada com a história do cristianismo retratado no livro
Uma Breve História da Humanidade. Agora estou curiosa para saber mais.
Para uma religião que prega o amor e compaixão, eles bem que mataram
muito em nome do fanatismo.
(5) Bem que podia ter um botão na Netflix “continuar onde você pegou no
sono”.
(6) Bem que me falaram que Lovecraft ia piorando com o decorrer dos
episódios. O melhor segue sendo o primeiro mesmo.
(7) Bem que minha mãe disse que não sou todo mundo...
2
Todos os dados coletados foram publicados no ano de 2021, o mesmo em que a coleta foi realizada,
de maneira que seria possível confrontar usos mais atuais da construção.
332
Diante desses enunciados, o que observamos, a respeito da forma,
é que a construção é composta não apenas pela sequência
fonologicamente preenchida “bem que”, mas tambm por uma sentena —
“eles mataram muito em nome do fanatismo”, “podia ter um botão na
Netflix ‘continuar onde você pegou no sono’”, “me falaram que Lovecraft ia
piorando com o decorrer dos episódios” e “minha mãe disse que não sou
todo mundo”. Isso significa dizer que a construão semipreenchida: fazem
parte dela tanto a sequência fixa “bem que” quanto o slot S, em que pode
ser encaixada, especificamente, uma sentença.
Mas por que dizemos que essa lacuna deve ser preenchida
particularmente por um constituinte de natureza sentencial? Considerando
outras alternativas, poderíamos hipotetizar, por exemplo, que o slot pudesse
ser preenchido por uma oração, como de fato acontece em (4) e (5). No
entanto, ao postular isso, não daríamos conta dos dados que, como em (6) e
(7), h mais de uma oraão sob escopo da sequência “bem que”. Em suma,
a construão admite, como constituinte sob escopo do “bem que”, qualquer
tipo de sentença, seja ela simples (formada por apenas uma oração, como
(4) e (5)) ou complexa (formada por mais de uma oração, como em (6) e (7)).
Ao mesmo tempo, é fácil constatar que o preenchimento por
constituintes menores que uma oração como complementos, adjuntos,
predicativos ou miniorações gera sentenças agramaticais:
(8) *Meu filho comeu bem que maçã.
(9) *Meu filho comeu maçã bem que ontem.
(10) *Meu filho é bem que divertido.
(11) *Eu considero bem que meu filho divertido.
O que concluímos a partir dessas análises é que, no polo formal da
Construção Bem Que S, está especificada a forma [bem que [S]], em que S
corresponde a um slot que tem natureza sentencial. Sendo assim, ele pode
ser preenchido tanto por um período simples quanto por um período
composto.
3.2 O polo semântico-pragmático da Construção Bem Que S
Descrito o polo formal, podemos tratar da análise do polo
semântico da CBQ. É notável, nos dados acima, que a construção não se
deve ao papel de designar tipos de situaes (“situation types”) particulares.
Isto é, em (4), por exemplo, está sendo designada uma situação em que um
agente metonímico (o catolicismo) realiza uma ação (comete assassinatos);
em (5), uma situação em que se sugere que um tema (uma determinada
tecnologia) seria passível de existir; em (6), uma situação em que um tema
(uma série televisiva particular) muda de estado (vai perdendo qualidade
333
com o tempo); e, em (7), por fim, uma situação em que um agente (a mãe
do locutor) faz um aviso (o de que seu filho não seria “todo mundo”). Em cada
um dos exemplos, portanto, trata-se de uma situação de mundo diferente,
ou seja, de um objeto de conceptualização distinto (VERHAGEN, 2005).
O que se conclui a partir disso é que a Construção Bem Que S não
atua no nível O, em que, nas performances linguísticas, segundo Verhagen
(2005), são elaboradas as representações de objetos de conceptualização
específicos. Com efeito, procuraremos sustentar aqui que ela atua no nível
S, o da interação entre sujeitos, na medida em que sua função comunicativa
é a de especificar um determinado enquadramento conceptual para o
objeto de conceptualização em questão. Para demonstrar esse ponto,
observamos os exemplos (4), repetido abaixo como (12), e o exemplo (13):
(12) Estou um pouco chocada com a história do cristianismo retratado no livro
Uma Breve História da Humanidade. Agora estou curiosa para saber mais.
Para uma religião que prega o amor e compaixão, eles bem que mataram
muito em nome do fanatismo.
(13) Pipipi educar minha filha pra não ficar mostrando a bunda em rede social,
ata mas a filha dos outros bem que tu gosta de olhar né.
Observando a última sentença do exemplo em (12), em que
aparece uma instância da CBQ, percebe-se que um contraste entre duas
ideias: a do catolicismo enquanto uma religião que prega amor e compaixão
e a do catolicismo enquanto uma instituição que matou muito em nome do
fanatismo. Nota-se que uma oposição também está presente em (13)
nesse caso, entre educar a filha para não expor seu corpo e observar o corpo
exposto da filha de outrem.
Aqui, argumentaremos que a “oposião” evidenciada nos
exemplos (12) a (13) tem uma natureza eminentemente intersubjetiva.
Especificamente, sugerimos que o item “bem que” sinaliza que o
denotatum da sentença escopada por ele deve ser interpretado como a
negação de uma proposição prévia. Dito de outra maneira, sustentamos que
a CBQ é usada, essencialmente, quando se deseja marcar a rejeição a
alguma ideia anteriormente estabelecida. Na prática, isso significa que, em
(12) a (13), os falantes não veiculam apenas a ideia de que “o catolicismo
matou muito em nome do fanatismo e de que “o interlocutor gosta de
olhar” (respectivamente): eles comunicam ainda um adicional de
significado (“surplus of meaning”; TANTUCCI, 2021), que aqui corresponde à
ideia de que o conteúdo explicitamente veiculado se coloca em oposição a
algum conteúdo previamente estabelecido.
Diante dessas observações, a nossa proposta, para o polo
semântico-pragmático da Construção Bem Que S é a que segue: a CBQ é
334
uma construção de intersubjetividade (VERHAGEN, 2005) rótulo que
compreende as construções que atuam no enquadramento conceptual de
um dado objeto de conceptualização , cuja função é marcar a rejeição a
uma proposição previamente estabelecida. Especificamente, procuraremos
demonstrar que essa construção sempre evoca a pressuposição [não X] e
veicula a asserção [não é verdade que [não X]]
3
.
Para ilustrar essa proposta, tomemos o exemplo (12). O que
defendemos é que o falante, ao utilizar um construto da CBQ, evoca o
pressuposto (ou seja, assume que esteja presente na mente do seu ouvinte
a ideia) de que o catolicismo não mataria muito em nome do fanatismo (o
que corresponde a [não X]) isso porque, de acordo com o seu
conhecimento de mundo, como ele mesmo diz, essa religião prega valores
como amor e compaixão. Ao mesmo tempo, também ao utilizar a CBQ, ele
veicula a asserção de que essa pressuposição não é verdadeira: na realidade,
o catolicismo matou, sim, e muito, em nome do fanatismo (o que
corresponde a [não é verdade que [não X]]). É nessa asserção que reside a
função de rejeição, dado que ela contraria o conteúdo de uma proposição
pressuposta.
Paralelamente, em (13), argumentamos que o falante utiliza a CBQ
para, ao mesmo tempo, evocar o pressuposto de que o sujeito em questão
não gosta de olhar o corpo da filha dos outros ([não X]), dado que ele
presumivelmente havia dito que educava sua filha para não se expor, e
veicular a asserção de que isso não é verdade ([não é verdade que [não X]]),
rejeitando assim a ideia anterior (e consequentemente afirmando que ele
gosta, sim, de olhar a filha dos outros).
3.3 A conexão entre os polos
Até este ponto, propusemos uma análise tanto do polo formal
quanto do polo semântico da Construção Bem Que S. Vale, agora,
estabelecer a conexão entre eles. O que se observa, nos dados acima, é que
o elemento semântico X (presente tanto na rmula [não X] quanto na
fórmula [não é verdade que [não X]]) é denotado por alguma oração da
porção formal S da construção. Isto é, dado que a construção serve para
contrariar uma proposição pressuposta [não X], entende-se que X é o oposto
dessa pressuposição: na verdade, ele corresponde a um conteúdo
semântico ao qual o falante se alinha, em vez de rejeitar. É essa proposição,
3
Os conceitos de pressuposição e asserção são utilizados aqui conforme Lambrecht (1994). Segundo
o autor, a pressuposição é um tipo de informação, léxico-gramaticalmente evocada em uma
sentença, que o falante assume que o ouvinte tem no momento em que a sentença é proferida.
Por outro lado, a asserção é aquele tipo de informação que o locutor espera que o interlocutor tenha
como resultado de ouvir a sentença proferida.
335
defendida pelo locutor, que é denotada explicitamente por uma oração em
S.
Em (12), a sentença S é composta por apenas uma oração, que
denota a ideia à qual o falante se alinha: o catolicismo “matou muito em
nome do fanatismo”. J em (13), observa-se um período composto por duas
orações. Nesse caso, aquela que denota a proposição defendida pelo falante,
ou seja, [X], a menos encaixada: “tu gosta de olhar”, j que o falante se
alinha à ideia de que o gosto do interlocutor, e não exatamente a sua atitude
de olhar, vai de encontro com o que ele prega.
No quadro abaixo, está sistematizada nossa proposta acerca da
forma e da função (em sentido amplo) da CBQ, bem como, crucialmente, da
relação entre essas duas dimensões.
Quadro 1 Os polos formal e semântico da Construção Bem Que S
FUNÇÃO
PRESSUPOSIÇÃO
ASSERÇÃO
FÓRMULA
FÓRMULA
[não X]
[não é verdade que [não X]]
FORMA
[Bem que [S]]
RELAÇÃO FUNÇÃO-FORMA
X é denotado por uma oração de S
Fonte: elaboração própria
Observam-se, no quadro, as fórmulas correspondentes à asserção
veiculada e à pressuposição evocada pela construção, além do esquema
formal que ela instancia. Ademais, é possível observar a relação entre os dois
polos, que liga X a qualquer oração de S, formulação que abarca a variedade
encontrada em relação à qual oração apresenta tal denotação.
Nossa proposta é a de que todos os usos da CBQ remontam, em
última instância, ao esquema acima. Isto é, sustentamos que a CBQ sempre
é usada para rejeitar a validade de uma proposição que o falante assume
existir no repertório de proposições conhecidas pelo ouvinte. A título de
exemplificação, podemos aplicar a esquematização do quadro 1 ao exemplo
(12), baseados na caracterização sintática e semântica que foi feita a respeito
dele:
336
Quadro 2 Aplicação das generalizações semântico-pragmáticas e
sintáticas da Construção Bem Que S para o dado (12)
PRESSUPOSIÇÃO
ASSERÇÃO
FUNÇÃO
FÓRMULA
ANÁLISE
FÓRMULA
ANÁLISE
[não X]
[o catolicismo não
matar muito em
nome do fanatismo]
[não é verdade
que [não X]]
[não é verdade
que [o
catolicismo não
matar muito em
nome do
fanatismo]]
FORMA
[Bem que [eles (o catolicismo) mataram muito em nome do
fanatismo]]
RELAÇÃO
FUNÇÃO-FORMA
X denotado pela oraão eles mataram muito em nome do
fanatismo” de S
Fonte: elaboração própria
3.4 Usos particulares da construção bem que S
No entanto, casos em que essa função comunicativa
provavelmente é menos autoevidente. A título de exemplo, contrastemos o
uso em (12) acima, repetido abaixo como (14), aos usos (6), retomado como
(15), e (5), repetido como (16):
(14) Estou um pouco chocada com a história do cristianismo retratado no livro
Uma Breve História da Humanidade. Agora estou curiosa para saber mais.
Para uma religião que prega o amor e compaixão, eles bem que mataram
muito em nome do fanatismo.
(15) Bem que me falaram que Lovecraft ia piorando com o decorrer dos
episódios. O melhor segue sendo o primeiro mesmo.
(16) Bem que podia ter um botão na Netflix “continuar onde você pegou no
sono”.
Em (14), conforme já comentado, o construto da CBQ é usado para
rejeitar uma proposição prévia (qual seja, a de que o cristianismo não
acarretaria assassinatos). Nesse sentido, como vimos, esse exemplo se
conforma com facilidade ao esquema do Quadro 1. Em (15) e (16), porém, o
cenário é menos óbvio. No primeiro caso, é possível afirmar, intuitivamente,
que o falante está concordando com e não rejeitando uma opinião
previamente expressa (qual seja, a opinião de que a série Lovecraft perderia
qualidade ao longo do tempo). No segundo caso, em que o construto é
usado para expressar um desejo (o de que a Netflix crie um tipo específico
de botão), não é evidente qual seria a (ou mesmo se haveria uma) proposição
rejeitada. Nas próximas seções, abordaremos esses dois casos.
337
3.4.1 Usos com função discursiva de admissão de erro
Como vimos anteriormente, os exemplos (12-13) se caracterizam
por veicular a asserção de que o sujeito rejeita uma proposição pressuposta
[não X], afirmando que ela não é verdadeira. No entanto, conforme
comentamos a respeito do exemplo (15), brevemente ao final da seção
anterior, existe um conjunto de dados em que parece ser identificável a
função discursiva contrária, qual seja, a de concordância com uma
proposição prévia. Analisemos agora alguns deles (incluindo o próprio
exemplo (15), repetido abaixo como (17)):
(17) Bem que me falaram que Lovecraft ia piorando com o decorrer dos
episódios. O melhor segue sendo o primeiro mesmo.
(18) Eu bem que me avisei para não emprestar minha Hq de Blade Runner.
Porém não me ouvi.
(19) Minha filha me deu muito trabalho quando era mais novinha, eu sei,
mas bem que me falaram que eu ia sentir muita falta, ela tá crescendo o
rpido, vai com calma tempo…
Note-se que, em (17), como ficou dito, o falante expressa sua
concordância com a posição das pessoas que haviam assistido à série antes
dele. De maneira análoga, em (18), o falante expressa concordância em
relação à resolução a que ele tinha mesmo tinha chegado, em outro
momento, quanto à atitude de emprestar sua HQ. Em (19), analogamente, o
falante parece estar expressando sua concordância com a proposição de
que sentiria falta da época em que sua filha era mais nova.
Esses dados apontam para uma função discursiva de
concordância o exato oposto da função de rejeição que propusemos para
a CBQ. Como então poderíamos dar conta deles? Em outras palavras, como
eles poderiam se conformar ao esquema geral do quadro 1?
O que propomos é que dados como (17-19) evocam a seguinte
situação: o falante toma conhecimento de uma dada proposição e, em
seguida, discorda dela ou, pelo menos, não se compromete integralmente
com a ideia de que ela seja verdadeira. Depois disso, por alguma razão, ele
revê seu posicionamento e passa a concordar com a proposição inicial. Por
fim, ao utilizar a construção, ele marca essa mudança de posicionamento
rejeitando, nesse caso, o seu descrédito inicial relativo à proposição.
Vejamos isso em (17): o que argumentamos é que, nesse caso, o
falante ouviu falar que a série Lovecraft pioraria ao longo dos episódios e, de
início, não aceitou essa opinião. Em seguida, ao assistir de fato à série, ele
muda de opinião, pois percebe que, como ele diz, “o melhor continua sendo
o primeiro”. Ao utilizar a construão, o que ele faz algo como “dar o brao
338
a torcer”: ele rejeita sua opinião inicial acerca da proposição de que a série
não pioraria, confessando que estava errado.
Uma evidência cotextual de que, de fato, o construto evoca uma
situação de descrédito inicial do falante diante de alguma proposição pode
ser vista em (18). Nesse exemplo, o falante “avisa a si mesmo” que não deve
emprestar sua HQ, mas, como ele d a entender logo em seguida, “não se
d ouvidos”. Por fim, o que a enunciaão do construto expressa sua rejeião
à sua própria negligência em relaão ao seu “autoconselhoinicial (de não
emprestar a HQ) e, ipso facto, o alinhamento à (concordância com a) seu
conselho original. Para expressar essa ideia, diremos que esse tipo de uso
realiza uma função discursiva de admissão de erro um rótulo que
abrange simultaneamente a ideia de concordância (se uma pessoa admite
um erro, ela está concordando com uma crítica) e a de rejeição (se uma
pessoa admite um erro, ela está rejeitando sua própria avaliação, atitude ou
posição original).
Diante dessa análise, a impressão inicial de que esses dados
servem a uma função de concordar com algo, em vez de rejeitar uma
proposição prévia, fica justificada, na medida em que fica claro que aqui
dois posicionamentos em jogo: aquele de que o falante toma conhecimento
(como, em (17), a posição de que a série pioraria) e aquele que o falante
assume ao não acreditar nessa proposta ou não se comprometer com ela
(como, em (17), a posição de que a série não pioraria). Assim, nos usos em
que a CBQ assume função de admissão de erro, o falante, de fato, ao mesmo
tempo em que se alinha ao primeiro posicionamento, concordando com ele,
rejeita o segundo posicionamento, refutando-o.
É importante reconhecer esse segundo movimento porque ele
contribui para a nossa argumentação de que tanto dados como (17-19),
quanto como (12-13) atualizam as mesmas generalizações semântico-
pragmáticas e sintáticas que propomos para a CBQ. Formalmente, os dois
grupos de exemplos devem ter a forma [bem que [sentença]], em que uma
oração da sentença denota [X]. Além disso, semanticamente, ambos os
grupos veiculam a asserção [não é verdade que [não X]], ou seja, expressam
a rejeição a uma proposição pressuposta [não X].
Para demonstrar a validade dessa sistematização, apliquemos a
generalização do Quadro 1 ao dado (19), considerando, agora, as
particularidades desse tipo de uso da CBQ. Esse exemplo evoca um cenário
no qual: (i) o falante foi teria sido avisado por alguém que, no futuro, sentiria
falta de quando sua filha era mais nova e (ii) o falante, inicialmente,
negligenciou esse alerta ou discordou dessa previsão (conforme sugerido
pela sequência “Minha filha me deu muito trabalho quando era mais
novinha”). É relativamente a esse cenrio que o enunciado em (19)
339
proferido. Aqui, o construto da CBQ em questão realiza o movimento de
rejeitar a negligência ou discordância inicial (em relação ao vaticínio
segundo o qual o falante sentiria falta da época em que a filha era um bebê
ou uma criança) e, ao mesmo tempo, expressar concordância com uma
proposição prévia (o mesmo vaticínio).
Tecnicamente, portanto, é possível afirmar que o enunciado (19)
evoca o pressuposto [não X], que, especificamente, nesse caso, diz respeito
ao seu desprezo em relação à proposição inicial
4
. Ou seja, aqui, [não X] pode
ser formulado como “não sentirei falta de quando minha filha era mais
nova”. O que a construão Bem Que S faz, ao ser usada nessa frase,  rejeitar
essa pressuposição. Ou seja, ela veicula a asserção [não é verdade que [não
X]], que, aqui, corresponde a “não verdade que eu não sentiria falta da
minha filha quando era mais nova”. Discursivamente, portanto, o falante faz
uso desse idiom para admitir um erro passado, assumindo que reviu seu
posicionamento e passou a se alinhar à ideia de que sente, sim, saudades do
tempo em que a filha era mais nova.
Do ponto de vista sintático, o dado atualiza a fórmula [bem que [S]]:
aqui, a sequência “bem que” seguida da sentena “me falaram que eu ia
sentir muita falta”, que estruturada por um período composto.
Especificamente, a oração mais encaixada é aquela que designa X, uma vez
que o falante se alinha com a ideia de que viria a sentir muita falta da filha
não à de que ele alguém teria comunicado isso a ele, como designado
pela oração menos encaixada.
O quadro 3 resume a aplicação da proposta ao exemplo (19).
4
Aqui, deve ser feita uma ressalva acerca da natureza pressuposicional dessa proposição. Ao dizer
que ela é uma pressuposição, estamos dizendo, conforme explicitado na seção 2.3, que se trata de
um conhecimento que o ouvinte assume que o seu falante já tem ou está pronto para pressupor no
momento em que a sentença é proferida. Nota-se que, nos casos do grupo de admissão de erro como
um todo, acreditamos que não necessariamente o ouvinte já tenha de fato sabido do conteúdo dessa
proposição pressuposta antes de o falante proferir a sentença. Por exemplo, em (17), não
necessariamente o ouvinte já sabia do fato de que o falante achava que Lovecraft não pioraria ao
longo dos episódios. Em (19), não necessariamente o interlocutor realmente sabia que o falante tinha
discordado da proposta de que ele sentiria falta de quando sua filha era nova. Nos casos em que isso
potencialmente tenha acontecido, defendemos se tratar de um caso de acomodação de
pressuposição (LAMBRECHT, 1994): a estrutura informacional da construção permanece a mesma,
enquadrando essa proposição como pressuposta. Ao fazer uso dela, o falante leva o ouvinte a inferir
que seu conteúdo seja verdade, por mais que ele não soubesse disso.
340
Quadro 3 Aplicação das generalizações semântico-pragmáticas e
sintáticas da Construção Bem Que S para o dado (19)
PRESSUPOSIÇÃO
ASSERÇÃO
FUNÇÃO
FÓRMULA
ANÁLISE
FÓRMULA
ANÁLISE
[não X]
[não sentir falta de
quando a filha era
mais nova]
[não é verdade
que [não X]]
[não é verdade
que [não sentir
falta de quando a
filha era mais
nova]
FORMA
[Bem que [S]]
RELAÇÃO
FUNÇÃO-FORMA
X é denotado por uma oração de S
Fonte: elaboração própria
Como se observa, no polo semântico-pragmático, aplica-se, para
um dado do grupo (17-19), a mesma descrição feita, em um dado do grupo
(12-13). Entretanto, algo importante deve ser salientado: como foi
destacado anteriormente, as frases de ambos os grupos apresentam função
discursiva de rejeição; no caso do grupo (12-13), rejeição de uma
proposição elaborada por outrem, e, no grupo (17-19), rejeição de uma
proposição elaborada pelo próprio falante. É por isso que emerge, no
conjunto de dados (17-19), a função discursiva de admissão de erro. Ou seja,
para além de transmitir a ideia de contrariação, também presente nos usos
em (12-13), o falante utiliza a construção para fazer uma espécie de confissão
pública de que ele estava errado ao rejeitar ou ignorar uma dada ideia.
Demonstramos, nesta seção, que usos da CBQ que realizam a
função discursiva de adesão a uma proposição prévia também podem ser
analisados em conformidade com o esquema geral representado no
Quadro 1. Isto é, por mais que esses usos tenham certas particularidades, eles
não servem como contraexemplos à generalização aqui proposta para a
CBQ. Na próxima seção, procuraremos mostrar que o mesmo se aplica a um
outro subconjunto de usos da CBQ aqueles que apresentam, além da
ideia de rejeição, não a noção de admissão de erro, mas sim a função
discursiva de desejo.
3.4.2 Usos com função discursiva de desejo
Nesta seção, voltamo-nos para um conjunto de usos da CBQ que
expressa, intuitivamente, semântica de desejo, incluindo o exemplo (16),
retomado como (20). Observe-se:
(20) Bem que podia ter um botão na Netflix “continuar onde você pegou no
sono”.
341
(21) Poxa, bem que eu poderia ter acordado hoje primeiro dia de 2021 com
162 milhões de reais na conta.
(22) Eu digo que não queria a Manu no BBB, mas bem que eu queria
acompanhar 24h ela de novo.
Exploremos os dados. Intuitivamente, podemos perceber que
todos eles apresentam alguma expressão de desejo de algum objeto. Para
verificar isso, contraste-se o uso real em (20) com sua contraparte hipotética
sem o “Bem que”: “Podia ter um botão da Netflix ‘continuar onde você
pegou no sono’”. Note-se que essa frase hipotética pode tanto expressar
desejo quanto pode apenas expressar alguma possibilidade, ou seja,
configurar-se como um ato meramente constativo (AUSTIN, 1965). Por outro
lado, no uso real em (20), a noção de desejo está necessariamente presente:
uma parfrase para esse exemplo poderia ser “A Netflix ter um botão
‘continuar onde você pegou no sono’ seria uma boa ideia e eu desejo isso”.
O mesmo ocorre nos outros exemplos, em que a interpretação de desejo é
obrigatória.
É interessante analisar, no entanto, o objeto desse desejo em cada
caso. Pode-se dizer que se trata, em todos os exemplos acima, de algo que
não se espera que seja desejado, possivelmente porque sua obtenção é
improvável ou impossível, ou por se tratar de um desejo socialmente
inaceitável. Observemos cada caso. Em (20), o falante parece reconhecer
que seu desejo “exótico” porque depende de tecnologia muito específica
e aparentemente pouco verossímil. Em (21), implicitamente, entendemos
que o falante sabe que é improvável que ele ganhe tal quantia de dinheiro
de forma imediata. Por fim, em (22), o locutor parece entender (com base
em seu conhecimento de mundo) a improbabilidade de que uma
participante de um reality show seja chamada novamente para participar
dele em outra edição.
Como isso é importante para comprovar que esses usos atualizam
a nossa proposta para o polo semântico-pragmático da CBQ? Ora, dissemos
que, em todos os dados dessa construção, o seu uso evoca uma
pressuposição [não X], que é rejeitada por meio da asserção [não é verdade
que [não X]]. O que acontece, nesses casos, é justamente isso: o falante
assume que, devido ao seu caráter improvável, impossível ou socialmente
inaceitável de um dado desejo, a expressão desse mesmo desejo não é
esperada. Sob esse pano de fundo, o “bem que” sinaliza a quebra da sua
expectativa. Tecnicamente, sustentamos que, em usos do tipo (20-22), a
CBQ evoca o pressuposto [não X], em que a variável [X], nesse casos, é
preenchida sempre por [sujeito expressar desejo por D], sendo [D] o objeto
sendo almejado em cada caso. Ao utilizar a construção, ele veicula,
especificamente, a ideia de que [não é verdade que [não [sujeito expressar
342
desejo por D]]], convidando seu ouvinte a enquadrar sua expressão de
desejo como a rejeição de uma expectativa prévia relativa à expressão de
um desejo.
No que se refere ao polo formal, o usos do tipo (20-22) também
corroboram nossa proposta. Todos os dados de (20) a (22) são compostos
pela sequência fonologicamente preenchida “bem que” e uma sentena:
em (20), “podia ter um botão na Netflix ‘continuar onde você pegou no
sono’”; em (21), “eu poderia ter acordado hoje — primeiro dia de 2021 com
162 milhes de reais na conta”; e, em (22), “eu queria acompanhar 24h ela de
novo”.
Também, no que tange à conexão entre os polos, a proposta se
confirma. Aqui, se dissemos que a proposição pressuposta [não X]
corresponde a “um sujeito não vai expressar publicamente desejo por um
dado tipo de objeto”, então [X] corresponde a “um sujeito vai expressar
publicamente desejo por um dado tipo de objeto”. Isso, de fato, o conteúdo
de S, em que é expresso o objeto de desejo do falante.
Note-se, a esse respeito, que, em todos os usos com função
discursiva de desejo, a presença de uma marca de modalização nos
verbos
5
. Em (20-22), observam-se as formas verbais “podia”, “poderia”,
“queria”. Essas formas são utilizadas, mesmo em seu uso independente da
CBQ, para veicular o valor de desejo; seja explicitamente, no caso do verbo
“querer”, seja via implicatura conversacional (GRICE, 1975), no caso do verbo
“poder”:
(23) Podia ter um botão da Netflix “continuar onde você pegou no sono”.
(24) Poxa, eu poderia ter acordado hoje primeiro dia de 2021 com 162
milhões de reais na conta.
(25) Eu digo que não queria a Manu no BBB, mas eu queria acompanhar 24h
ela de novo.
Portanto, esse valor não é intrínseco à CBQ. Na verdade, ele é
apenas tomado como objeto de conceptualização para ser enquadrado
enquanto uma rejeição de expectativa. Ou seja, é nessas sentenças, que
preenchem o slot da construção e que têm marcas de modalização que está
a expressão de desejo [X]; logo, como defendemos, também nesses casos
uma oração de S é responsável por denotar [X].
Estando explicitada a nossa proposta, podemos agora aplicá-la ao
exemplo (20) para demonstrar sua procedência. O que propomos é que o
falante faz, por meio da Construção Bem Que S, nesse caso específico, é
5
Os dados encontrados no Twitter com função discursiva de desejo apresentavam, na grande maioria
das vezes, verbo conjugado no pretérito perfeito do indicativo ou no futuro do pretérito do indicativo,
tempos caracteristicamente modais. Há poucos casos, ainda, em que isso não ocorreu. Por outro lado,
nesses dados, o verbo usado foi “poder”, que, por sua vez, tambm  tipicamente modal.
343
evocar a ideia de que um botão, na Netflix, com a funão continuar onde
você pegou no sono” não seria desejado por algum sujeito. Isso pode-se
dever a diversos motivos, mas intuitivamente podemos hipotetizar que não
se espera que se expresse desejo por algo desse tipo porque se trata de uma
tecnologia inverossímil, afinal, é extremamente avançada. Nesse sentido,
enunciar que se deseja algo do tipo pode ser percebido socialmente como
“querer demais” ou “forar a barra”, porque, provavelmente, ultrapassa o
limite do provável ou alcançável diante das tecnologias que dispomos hoje
e de que vamos dispor em um futuro próximo.
No entanto, apesar do que o falante calcule a respeito da visão da
sociedade acerca dessa situação, há, de fato, motivos para ele desejar um
botão desse tipo. Mesmo sendo difícil consegui-lo, ele seria muito
conveniente, afinal, não seria preciso, ao se cair no sono assistindo uma série
ou filme, investigar em qual momento isso ocorreu para retornar àquele
ponto. Portanto, vendo-se diante da expectativa social negativa relativa à
expressão desse desejo, mas convicto de que, na verdade, trata-se de um
recurso valioso, o falante ousa contrariar a sociedade, ou algum membro
específico dela, afirmando que deseja, sim, aquele objeto.
Assim, por meio da CBQ, em (20), o falante evoca a proposição
pressuposta [não [sujeito expressar desejo por botão “parar onde você
pegou no sono”]]. Ao mesmo tempo, ele rejeita essa proposição, veiculando
a asserão [não verdade que [não [sujeito deseja botão “parar onde você
pegou no sono”], e afirmando, portanto, que ele deseja esse botão. Observa-
se que o dado instancia a forma [bem que [sentença]]: [bem que [podia ter
um botão na Netflix “continuar onde você pegou no sono”], em que a
sentença S é responsável por denotar, por implicatura, [X], ou seja, a
expressão de desejo do falante. Isso pode ser resumido no quadro abaixo.
Quadro 4 Aplicação das generalizações semântico-pragmáticas e
sintáticas da Construção Bem Que S para o exemplo (20)
PRESSUPOSIÇÃO
ASSERÇÃO
FUNÇÃO
FÓRMULA
ANÁLISE
FÓRMULA
ANÁLISE
[não X] = [não
[sujeito
expressar
desejo por D]]
[não [sujeito expressar
desejo por [ter um
botão na Netflix “parar
onde você pegou no
sono”]]]
[não é verdade
que [não X]] =
[não é verdade
que [não
[sujeito
expressar
desejo por D]]]
[não é verdade que
[não [sujeito expressar
desejo por [ter um
botão na Netflix “parar
onde você pegou no
sono”]]]
FORMA
[Bem que [S]]
RELAÇÃO FUNÇÃO-
FORMA
X é denotado por uma oração de S
Fonte: elaboração própria
344
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Defendemos aqui que a Construção Bem Que S é uma construção
de intersubjetividade: no seu polo semântico-pragmático, especificamente,
ela evoca o pressuposto [não X] e o enquadra como algo que não é verdade,
veiculando a asserção [não é verdade que [não X]. Ou seja, ela toma a
proposição pressuposta como um objeto de conceptualização e a contraria,
perfilando uma ideia de rejeição e convidando seu ouvinte a fazer o mesmo.
Nesse sentido, ela sempre é usada para provocar a ideia de rejeição. Além
disso, há dois casos particulares em que, além dessa função pragmática, há
também a evocação da ideia de admissão de erro (em que se contraria uma
ideia elaborada por si mesmo); e a de desejo (em que se contraria uma
expectativa prévia de que um sujeito não expressaria um determinado
desejo). No polo formal, ela é marcada pela estrutura [bem que [sentença]],
em que alguma oração da sentença S é responsável por denotar o conteúdo
do componente semântico [X].
Assim, desenhamos aqui uma proposta de caracterização para
uma construção idiomática do português brasileiro. Isso contribui não
apenas para a descrição dessa expressão idiomática, que a literatura na
área não tem dado atenção a esse fenômeno particular, mas também para
dar continuidade à empreitada construcionista, caracterizada em grande
medida (embora, é claro, não exclusivamente) pela ênfase sobre estruturas
semiprodutivas, com o objetivo de demonstrar, em última instância, que
elas constituem parte fundamental, e altamente sofisticada, do
conhecimento linguístico do falante.
345
REFERÊNCIAS
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equivalentes funcionais em português brasileiro: proposta de análise e classificação
para o uso. Pandaemonium, São Paulo, v. 23, n. 40, maio-ago 2020. DOI:
https://doi.org/10.11606/1982-88372340166
AUSTIN, John L. How to do Things with words. New York: Oxford University Press,
1965.
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Press, 2010.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramtica do portugus contemporâneo. 7.
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FILLMORE, Charles J.; KAY, Paul; O’CONNOR, Mary Catherine. Regularity and
Idiomaticity in Grammatical Constructions: The Case of Let Alone. Language, vol.
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GRICE, P. Logic and conversation. In: COLE, P.; MORGAN, J. (Eds.). Syntax and
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LAMBRECHT, K. Informational structure and sentence form: topic, focus and the
mental representation of referents. Cambridge: University Press, 1994.
TANTUCCI, Vittorio. Language and social minds: The semantics and pragmatics of
intersubjectivity. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.
VERHAGEN, Arie. Constructions of Intersubjectivity: Discourse, Syntax and
Cognition. Oxford: Oxford University Press, 2005.
WULFF, Stefanie. Words and Idioms. In: HOFFMANN, Thomas; TROUSDALE,
Graeme(Ed.). The Oxford handbook of construction grammar. Oxford: Oxford
University Press, 2013.

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