Como nossa forma de falar revela quem somos: linguista Raquel Freitag desvenda relação entre linguagem e identidade

Raquel Freitag é uma das principais sociolinguistas do Brasil. Professora titular do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade de Sergipe (UFS), é graduada em Letras, mestra e doutora em Linguística pela Universidade Federal de Sergipe, com formação complementar pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Freitag é reconhecida por sua abordagem crítica aos métodos tradicionais da sociolinguística brasileira e por defender uma ciência mais inclusiva e socialmente engajada.

Entrevista

Revista ECOS: Identidade é uma palavra que se vê muito por aí e são muitas as definições possíveis. Nos seus estudos, quais conceitos têm-se demonstrado mais úteis?

Raquel Freitag: Uma perspectiva de identidade é a que parte da cognição social, um ramo da psicologia social, mas que é subjacente a outros domínios, como o da sociolinguística. A cognição social é um conjunto de processos que guiam o modo como as pessoas se relacionam com outras pessoas no mundo: como as pessoas percebem outras pessoas, o que envolve os comportamentos e as emoções. As experiências decorrentes dos processos de cognição social são organizadas por meio da categorização. 

A organização das informações a que temos contato se dá por agrupamentos, por semelhanças, parciais ou totais, em categorias. Esse processo de categorização é essencial na automatização do processamento de informação e na tomada de decisões rápidas. Por meio da cognição social, a categorização pode envolver a formação de estereótipos e a classificação de pessoas com base em características percebidas. Uma das fontes de traços para categorizar as pessoas é a língua. Só de ouvir uma pessoa, com base nas informações categorizadas decorrentes de nossas interações sociais, conseguimos predizer com boa chance de acerto qual é a idade da pessoa, seu gênero ou de onde vem. Por exemplo, grande parte de nossas experiências de interação social convergem para a formação de um estereótipo entre voz aguda e gênero feminino. Ou voz grave e gênero masculino. Essa associação é decorrente das experiências associativas, e gera automaticamente um estereótipo, uma maneira mais eficiente de processar informações sociais. No entanto, isso pode levar a generalizações excessivas e estereótipos, influenciando a maneira como as pessoas percebem e interagem umas com as outras, a ponto de levar a julgamentos automáticos: porque tem voz aguda é mulher, ou porque tem voz grave é homem. Em princípio, estereótipos não são negativos; são, ao contrário, uma estratégia de automatizar a identificação. Mas partir do momento que atribuímos nome a uma entidade e a inserimos em uma determinada categoria, estamos atribuindo valores positivos ou negativos e definindo seu lugar em escalas hierárquicas.

A categorização atua fortemente na formação da nossa consciência sociolinguística: diferentes variedades linguísticas (dialetos, sotaques, jargões) podem ser categorizadas e associadas a diferentes grupos sociais. Essa categorização das variedades linguísticas não depende de instrução explícita, como uma regra de gramática a ser estudada, mas é resultado da nossa experiência e exposição às diferentes variedades, constituindo nosso repertório dialetal. Por exemplo, a aspiração de /v/ (esta[v]a ~ esta[h]a) é um traço dialetal que é associado a lugares específicos do Brasil, como Fortaleza, mas exclusivamente, também ocorre em outras regiões do Nordeste. Um estudo com pessoas de Fortaleza mostrou que este traço é percebido como um traço de pertencimento à comunidade, em um perfil social específico, de pessoas com menos escolarização, sendo um traço estigmatizado. 

A forma como a pessoa fala pode ser categorizada de maneira que impacta sua percepção social e identidade pessoal. Então, a estereotipia da categorização pode fazer que uma pessoa, só porque fez uma realização aspirada em uma palavra, como esta[h]a, seja categorizada como com menos escolarizada, e daí em diante, outras categorizações continuam sendo ativadas: pouca escolarização pode denotar menos capacidade e o julgamento de menos capacidade pode limitar as oportunidades que essa pessoa poderia ter.

A categorização afeta o modo como as pessoas expressam suas identidades e interpretam as identidades de outras pessoas. O modo como falamos dá pistas de nossa indexação social e influencia como somos percebidos pelas outras pessoas. A identidade linguística pode ocorrer no nível individual – uma pessoa pode ser categorizada e avaliada com base em sua identidade linguística, o que influencia a cognição social e pode reforçar ou desafiar estereótipos – , ou no nível do grupo – a identidade linguística de um grupo pode influenciar a maneira como este grupo é categorizado socialmente, afetando as interações sociais e a dinâmica de poder dentro de uma sociedade. Por exemplo, uma variedade linguística do Nordeste em confronto com uma variedade do Sudeste.

É, então, pela língua que constituímos nossa identidade na dinâmica das interações sociais.

Revista ECOS: E o que ou quem de fato determina qual a identidade de alguém? Seria a própria pessoa? O grupo ao qual pertence? O seu comportamento?

Raquel Freitag: Embora a categorização seja um processo extremamente produtivo e automático, não é simplista ou direto, depende do contexto. Por isso, as identidades não são pré-definidas e tão automáticas quanto gostaríamos. Por exemplo, costumamos associar a realização do R retroflexo como o “R caipira”; daí derivamos uma série de outras categorização: é um traço linguístico associado ao interior de São Paulo e de pessoas com menos escolarização. Esse estereótipo circula na sociedade, nas personagens Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, ou Chico Bento, da Turma da Mônica. Na vida real, a associação não é assim direta, e dependendo de quem está falando e de onde, o significado é diferente, mobilizando diferentes campos indexicais relacionados à localização geográfica: enquanto pessoas de São Paulo consideram a realização do R retroflexo como caipira e simples, pessoas de fora da comunidade associam o traço aos valores de solidariedade e sinceridade. Este é apenas um exemplo.

Revista ECOS: É possível, então, compreender a identidade por meio do estudo da linguagem, certo? O que se deve observar na linguagem para se chegar a conclusões sobre um determinado grupo?

Raquel Freitag: No campo da sociolinguística, há várias vertentes de estudo que contribuem para o desvelamento das associações entre traços linguísticos e perfis sociais, assim como seus efeitos na construção e na performance das identidades linguísticas. A primeira coisa que precisamos ter em mente é que sempre teremos uma visão parcial e recortada de uma dinâmica de interação complexa e multimodal. Por isso, sempre é importante confrontar outras fontes de abordagem. Existem técnicas diretas, que são aquelas em que abordamos diretamente as pessoas sobre a questão, perguntando o que ela pensa, o que ela acha, a que ela associa determinado traço da língua. Diferentes instrumentos podem ser utilizados para isso, desde a técnica de entrevistas com perguntas semi-dirigidas sobre o tema até instrumentos e escalas objetivas. Apesar de ser uma das técnicas mais rápidas e com potencial de atingir um grande número de participantes, possibilitando generalizações, um ponto negativo desta abordagem é as pessoas costumam se policiar, mantendo-se dentro das respostas socialmente desejáveis. Outra abordagem é a que se vale de técnicas indiretas, com estratégias de pesquisa encoberta, em que se pede para a pessoa realizar uma tarefa sem alertá-la que o objeto manipulado é um traço linguístico, com o objetivo de verificar a sua reação. Por exemplo, uma mesma pessoa gravar duas vezes uma mesma fala, um pedido de emprego, por exemplo, e, em uma das gravações, realizar os traços de aspiração, e, na outra gravação, realizar todos os R como retroflexos. Depois, pedir para pessoas decidirem para quem dariam o emprego. Subjacente à escolha está o juízo de valor associado aos traços linguísticos manipulados, e também o modo como a pessoa que está julgando fala. Esta é uma abordagem mais complicada, pois envolve a elaboração de situações experimentais balanceadas, para evitar que outras variáveis interfiram no julgamento, além de envolver situações eticamente sensíveis (expor uma pessoa a uma situação cujo resultado é a expressão de preconceito). Outra abordagem é observar o tratamento societal: como aquele traço linguístico circula nas mídias e no planejamento linguístico de uma dada comunidade? Estas pistas só aparecem em traços linguísticos que estão no limite da consciência, o que também limita o escopo da abordagem. A combinação de abordagens direta, indireta e societal tem potencial de desvelar a constituição identitária de traços da língua.

Revista ECOS: Qual o papel da linguagem na formação e na afirmação de um dado grupo social? Como ela interage com as pressões sociais nesse processo?

Raquel Freitag: Pela perspectiva da cognição social, a língua é a expressão da construção social, é pela língua que somos categorizados no mundo. Em uma sociedade multifacetada como a sociedade brasileira, não podemos nos levar pela categorização de que existe uma língua única. Diferentes grupos expressam suas identidades por diferentes variedades linguísticas. Historicamente, as contribuições de outras línguas foram sendo apagadas, o que vai invisibilizando identidades. Uma variedade linguística que está associada a um grupo de prestígio e poder, é alçada a uma modelo de referência, como se fosse a língua. E o que for diferente desta variedade é considerado errado, feio, vulgar, enveredando para categorização de quem não tem esses traços linguísticos considerados de prestígio. O resultado é o preconceito e a discriminação. O reconhecimento de que o Brasil é multilíngue e mesmo no português que é falado há diferentes matizes, é o primeiro passo para uma política de respeito linguístico.

Revista ECOS: Acaba ficando claro que, numa mesma comunidade de fala, existe uma grande diversidade de identidades possíveis. Mas quando uma pessoa participa de mais de uma comunidade? Como isso tende a afetar a formação da sua identidade?

Raquel Freitag: Um conceito que tem sido adotado na sociolinguística para lidar com a mobilidade a transição entre diferentes grupos é o de comunidades de práticas. No nosso dia a dia, nos envolvemos em diferentes grupos: o grupo da academia, o grupo do trabalho, o grupo da família, e assim por diante. E nesse processo nós carregamos traços de um grupo a outro. Um contexto bem característico é o de entrada na Universidade, e como os traços linguísticos do grupo de origem vão sendo conformados pelas normas do grupo. Coordeno um projeto que estuda esse processo na Universidade Federal de Sergipe: com o passar do tempo, estudantes na universidade modificam a forma como falam, se adequando às normas da comunidade, e quanto mais envolvidos nas práticas da universidade, mais expressiva é a conformação da nova norma. Pela cognição social, são as relações endogrupo e exogrupo: estar em um grupo e querer pertencer a ele nos faz incorporar traços que nos identifiquem, que nos categorizem como pertencentes ao grupo. E o contrário também ocorre. Tendemos a minimizar as diferenças dentro do grupo e amplifica-las fora do grupo. 

Revista ECOS: Falando em tensão, nos últimos anos, vimos um grande aumento nos conflitos entre diferentes grupos, mas também há um senso de acolhimento e empoderamento quando alguém passa a fazer parte de um. Para você, a linguagem tem sido usada mais como arma de segregação ou como ferramenta de união?

Raquel Freitag: Se a língua é uma pista para a categorização, em princípio, o processo leva a uma segregação. Tratei disso no meu livro Não existe linguagem neutra! Gênero na sociedade e na gramática do português brasileiro. A partir do momento que uma marca linguística é utilizada, seremos categorizados por conta desta marca. Um domínio da língua que historicamente esteve estável, que é a marcação binária de gênero, dá uma ideia de suposta união, ou naturalização, ou neutralidade. Mas essa neutralidade é apenas aparente: há uma conformação da regra. Sempre tomamos partido, seja conformando ou confrontando a norma. Como linguista, nesse momento da mudança, a sensibilização de que há uma regra subjacente a uma escolha, mesmo que inconsciente ou naturalizada, é nosso papel na sociedade.

Revista ECOS: Na prática, quer dizer, no dia a dia de alguém, quais os benefícios de aprender uma nova língua?

Raquel Freitag: Eu poderia dizer que apender uma nova língua é abrir mundos. Mas, no cenário brasileiro, queria dizer que aprender uma nova língua é gerar uma reserva cognitiva para o envelhecimento. Recomendo fortemente Tempo cognitivo e tempo social nas aulas de inglês para a envelhescência e terceira idade para entender esse tema.

Revista ECOS: Você conhece a canção “Disseram que voltei americanizada” da Carmen Miranda? Levando em consideração tudo o que conversamos até agora, você poderia fazer um comentário sobre a canção? Se quiser deixar uma última mensagem para os nossos leitores, será muito bem-vinda.

Raquel Freitag: Esta é uma excelente oportunidade para discutir estrangeirismos, mais especificamente, as ideologias subjacentes aos seus usos. A canção “Disseram que eu voltei americanizada” é de 1940, e já naquela época o tema estava em voga. Esse tema vai e volta na nossa sociedade. Em 1999, por exemplo, um projeto de lei conhecido como Lei dos estrangeirismos foi proposto, mas não emplacou. Dez anos depois, um projeto de lei estadual, que obrigava a tradução de qualquer expressão estrangeira com equivalente em língua portuguesa no estado do Rio Grande do Sul, foi proposto novamente. E, 20 anos depois, outro projeto de lei tentando proibir nomear empresas brasileiras com expressões em língua estrangeira com a justificativa de que o nome estrangeiro pode causar constrangimentos foi proposto. Mas a reflexão apresentada na canção diz respeito ao fato da perda da identidade; e não é só em língua estrangeira que isso acontece. Com as mobilidades que caracterizam o mundo contemporâneo, é cada vez mais difícil encontrar uma pessoa que nasceu, cresceu e viveu no mesmo lugar; e hoje, mesmo sem sair do lugar, as diferentes culturas chegam até nós pela conectividade. Com isso, o estereótipo da pessoa que tem uma fala típica, característica e autêntica vai se diluindo. E as pessoas não são mais percebidas, avaliadas, julgadas, enfim, categorizadas numa relação tão direta. As relações são complexas, envolvendo muitos fatores contextuais, o que torna a abordagem sociolinguística igualmente complexa no estudo das identidades linguísticas.

 

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